Não é por acaso que o monumento mais conhecido da aldeia de Vale de Ílhavo é a sua padeira, que, esculpida em granito por Xico Lucena, não exibe detalhes no rosto para assim melhor representar todas as mulheres que aí se dedicam ao fabrico de pão. Padas e folares fazem, afinal, parte da história da terra, desde que, no século XVII, aí se começou a rentabilizar o facto de a localidade ser abundante em água, dada a sua proximidade ao rio Boco, e fértil em levadas e azenhas, para moagem de grãos. Enformada a massa, os pães eram então levados a cozer em forno a lenha e é assim que ainda hoje se confecionam, para apreço dos locais e, sobretudo, de vizinhos e forasteiros que se deslocam a esse recanto do município de Ílhavo, no distrito de Aveiro, só para saborear aquele prazer artesanal.
As moagens Grave e Carlos Valente empregam agora processos mais industrializados para fazer farinha, mas, sendo as únicas empresas do setor em atividade na aldeia, ajudam a preservar o conhecimento sobre métodos mais antigos de cada vez que abrem as portas das suas unidades fabris ao público em geral. Essas visitas de turismo industrial, realizadas em contexto real de laboração, expõem memórias locais de outros tempos e difundem até histórias sobre a comunidade mais alargada da região, dada o vínculo da aldeia a localidades como a Ermida, o Vale das Maias e até a Vista Alegre – lugar que deu nome à célebre marca de porcelana.
A viagem até Vale de Ílhavo, povoado identificado em documentos históricos desde 1527 e classificado como “Aldeia de Portugal” desde março de 2023, compensa, no entanto, por várias outras razões, das quais a mais expressiva será a sua envolvente natural, sem urbanismo pesado que perturbe a vista de diversas áreas de floresta. Entre castanheiros, sobreiros e até alguns pilriteiros, detetam-se, aliás, manchas de arvoredo quase intocadas, o que justifica que certas faixas de terreno integrem a Rede Natura 2000 enquanto zona de proteção especial afeta à Ria de Aveiro.
Essa paisagem especial é um habitat propício a aves que fazem as delícias dos birdwatchers. Os flamingos serão uma das espécies mais identificadas na região, mas é extensa a lista de aves cujo estado de conservação é prioritário e cuja observação em Ílhavo, dado o seu grau de raridade, impressiona particularmente. Isso acontece, por exemplo, com a água pesqueira (Pandion haliaetus), a andorinha do mar anã (Sterna albifrons), o borrelho de coleira interrompida (Charadrius alexandrinus), o alfaiate (Recurvirostra avosett), a negrola (Melanitta nigra), a garça vermelha (Ardea purpurea), o milhafre preto (Milvus migrans) e o Pernilongo (Himantopus himantopus).
Passando da biodiversidade à criatividade humana, os pontos altos do calendário anual de Vale de Ílhavo são a Queima do Judas, as festas populares dedicadas ao Divino Salvador e a Nossa Senhora do Rosário, e, principalmente, o Carnaval tradicional. É certo que todas as celebrações da aldeia contam com o incentivo e a participação do tecido associativo local, mas nesse apoio destaca-se a dinâmica das coletividades “Os Baldas” e “Os Cardadores”, que, até pela escolha das suas designações oficiais, demonstram como o Entrudo assume especial importância na terra. Isto porque “Baldas” são aqueles que contrariam o sentido da palavra ao trabalharem duro para organizar o Carnaval de Vale de Ílhavo e “cardadores” são os homens que protagonizam o evento ao saltarem pela rua em poses focadas na sátira social e na brejeirice. Sob máscaras feitas de pele de carneiro, decoradas por bigodes com pêlo de rabo de boi e fartas cabeleiras de fitas coloridas, essas figuras vestem lingerie feminina, meias até ao joelho e cintos de chocalhos amarrados à cintura, recorrendo a outros apitos, sinetas e guizos para concentrar atenções na sua paródia.
Quando a folia assenta, as forças podem retemperar-se numa merenda com vista para as capelas da aldeia e o seu casario tradicional, em que ainda são visíveis fachadas com arranjos de Arte Nova e com a arquitetura típica dos torna-viagem, esses ex-emigrantes que, regressados à terra-natal, faziam questão de exibir no exterior das suas residências profusas manifestações da riqueza adquirida em destinos longínquos.
Em alternativa, o excesso de adrenalina pode aplicar-se em duas opções de turismo ativo exclusivas da região: o Trilho Pedestre da Rota das Padeiras, percurso circular que, a partir do largo com a escultura de homenagem a essas senhoras, se estende por 5,8 quilómetros de cenário urbano e natureza; e o Percurso K da Grande Rota da Ria de Aveiro, trajeto náutico que, ideal para canoa ou kayak, se prolonga da ponte de Fareja, em Vagos, até à da Vista Alegre, em Ílhavo, num total de 4,7 quilómetros através de floresta, campos agrícolas, sapais, caniçais e juncais. ■