Aldeias de Portugal

Farrangalheiros a desfilar no Carnaval da Aldeia de Portugal de Castro Laboreiro

Garruços, farrangalheiros e fogo no Carnaval de Castro Laboreiro e Quintela de Azurara

Carnaval em Portugal não tem que ser com desfiles, trajes e música do Brasil, e duas Aldeias de Portugal que mantêm viva a tradição do Entrudo genuinamente português são Castro Laboreiro, no município de Melgaço, distrito de Viana do Castelo, e Quintela de Azurara, no concelho de Mangualde, em Viseu. Aí a festa troca biquínis e samba por fogueiras comunitárias, bombos e gaitas-de-foles, garruços, farrangalheiros e danças e cantares de sonoridade tipicamente portuguesa.

Em Castro Laboreiro, a imagem de marca do Carnaval são aos farrangalheiros, personagem típica da aldeia que se destaca pelo seu chapéu, denominado “garruço”. É certo que este traje combina tradições lusas e galegas, mas as populações da região adotam-no agora como parte intrínseca da sua identidade, dado o apreço generalizado pelos farrangalheiros que, para celebrar o que nessas terras se designa como “Entroido Castrejo”, se exibem nas ruas em roupa colorida, véus faciais em renda (para manter o anonimato que permite mais liberdade aos foliões) e cabeça coberta pelos emblemáticos e altos garruços, feitos de cartão e decorados com fitas coloridas que ondulam a qualquer movimento. Mas serão “os” farrangalheiros mesmo homens?

Queima do Carnaval de Castro Laboreiro

Um momento da Queima do Carnaval em Castro Laboreiro.

As origens do Entroido

Segundo dados da Academia Ibérica da Máscara, “a palavra ‘Carnaval’ não faz parte da tradição castreja”, que prefere “o termo ‘Entroido’, como o galego, idêntico a ‘Entrudo’ e usado em muitas terras do Norte de Portugal”. Independentemente da palavra escolhida, o facto é que, segundo essa associação cultural, “o Entroido Castrejo seria um evento em que, na maior parte dos anos, a presença masculina se restringia a idosos e crianças”, por ocorrer antes de a população masculina regressar da sua migração sazonal.

Com base nisso, “possivelmente a festa sofreu influências galegas e transmontanas, locais onde os homens trabalharam durante séculos, (…) antes das grandes vagas migratórias para a América do Sul e Europa”. Então, quando os maridos emigravam, “as castrejas eram conhecidas como viúvas de vivos, sendo a sua indumentária constituída por roupa preta e rígida”. Isso explica o contraste operado no Carnaval, quando “essa austeridade era abandonada” e quem se vestia de farrangalheiro optava antes por “cores mais garridas e vistosas”, complementadas por adereços exuberantes.

O colorido garruço é o símbolo principal do Carnaval de Castro Laboreiro

O colorido garruço de Castro Laboreiro.

“Eles”, afinal, são “elas”

Quanto à origem do nome dessas personagens, a Academia Ibérica da Máscara confia na explicação do escritor Manuel Domingues, que, no livro “O pegureiro e o lobo – Estórias de Castro Laboreiro”, adianta que “farrangalheiro” é sinónimo de “farrapeiro”. Em rigor linguístico, contudo, tratar-se-iam sobretudo de “farrangalheiras”, já que, com exceção para algumas crianças e seniores, o traje mais chamativo está reservado para as mulheres, enquanto aos homens cabem as roupas mais modestas dos farrapeiros. Não é por acaso, portanto, que o atrativo garruço fica reservado só para elas (que sempre tiveram mais fama de coquettes).

Algumas das mulheres que encarnam a personagem do "farrangalheiro"

Algumas das mulheres que encarnam a personagem do “farrangalheiro”.

Roupa interior à vista

Ainda segundo a Academia, “os farrangalheiros eram mulheres solteiras que saíam à rua trajadas a rigor com o tradicional saiote castrejo, tipicamente vermelho, bordado ou decorado com cores garridas”, e ainda com blusas e “o lenço franjon”, que pode ser de várias cores. “Na mão podiam levar um pau, um animal ou outro elemento provocador”, mas destacam-se pelo saiote vermelho, que, em Castro Laboreiro, faz parte da chamada “roupa de baixo” e, no dia-a-dia, andava coberto pela saia preta. Ora no Carnaval, os farrangalheiros não usavam a saia negra, principal, e daí os comentários de que saíam à rua “deixando à mostra a roupa interior”.

Uma fogueira na serra da Peneda

Já no se refere à fogueira comunitária, tem o mesmo espírito da Queima do Entrudo que se verifica noutros pontos do país e terá origem nas comunidades celtas da Antiguidade. Nesse caso, a Academia Ibérica da Máscara cita um artigo de Rodrigues Lima, que alude à crença de que “o fogo promove o crescimento dos meses, o bem-estar dos homens e dos animais, quer estimulando-os positivamente quer evitando os perigos e as calamidades”. A queima do Carnaval representa, por isso mesmo, a purificação pelo fogo, um rito de passagem, uma limpeza em que o negativo é reduzido a cinzas e a luz otimista e calorosa das chamas inspira bons recomeços.

Em Quintela de Azurara o Carnaval faz-se com queimas, mascarados sobre andas, gaitas-de-foles, bombos, etc.

Em Quintela de Azurara, o Carnaval faz-se com queimas, mascarados sobre andas, gaitas-de-foles, bombos, jogos e comida da época, entre outra animação.

Em Quintela de Azurara, há desde gaitas-de-foles a BTT

O Carnaval de Quintela de Azurara também tem tradições de Carnaval já com alguns séculos e uma delas é a grande fogueira comunitária em torno da qual se reúnem moradores com ou sem fantasia, foliões mascarados a caminhar em andas, bandas de música, grupos de bombos, concertinas e ainda desse instrumento de particular perícia que é a gaita-de-foles.

A população garante que o Entrudo local é a época de maior folia nessa freguesia de Mangualde e assim se justifica um programa de animação que, pelos dias de Carnaval, inclui ainda jogos tradicionais como o da panela de barro, um mercado de produtos regionais e artesanato, um baile de máscaras, danças populares e até passeios de BTT – no que esta Aldeia de Portugal beneficia da paisagem do percurso pedestre “PR1 MGL Trilhos de Ludares”, com uma extensão de 16,6 quilómetros através de natureza e património arquitetónico e arqueológico.

Dois dos bonecos que decoram ruas e casas no Carnaval de Quintela de Azurara

Dois bonecos que decoram ruas e casas no Carnaval de Quintela de Azurara.

Falar mal de toda a gente

Uma das tradições locais – que replica, aliás, costumes idênticos de outros povoados rurais do Norte de Portugal – é a dos “casamentos de compadres e comadres”. Em Quintela de Azurara, uns dias antes do Carnaval, os organizadores da festa publicam a lista de quem assumirá esses papéis e, passados alguns dias, os compadres saem para a rua, onde publicamente ridicularizam quem quiserem, num exercício de humor que se espera ser sem má-fé e destinado apenas a provocar o riso. Dias depois, o púlpito passa a ser das comadres, que então se dedicam ao mesmo exercício viperino, aproveitando para mais alguma troça e uma justa resposta à anterior maledicência dos homens. Mas atenção: num e noutro caso, as piadas só podem recair sobre os habitantes solteiros da aldeia. Até o Carnaval tem limites, ora!

Abraço entre participantes do Carnaval de Quintela de Azurara

Zangam-se “compadres” e “comadres”, mas só enquanto dizem as piadas da praxe, porque no Carnaval de Quintela de Azurara ninguém as leva a mal.

Papas de milho e café antes da Sacada e do Enterro

Finalmente, na Noite de Carnaval, de segunda para terça-feira, Quintela de Azurara tem festa pela madrugada dentro, sempre com a grande fogueira comunitária a funcionar como ponto de encontro e palco principal. Depois, já com o sol quase a raiar, por volta das 05h00, os resistentes juntam-se em torno d panelas de barro ou caldeirões de ferro para retemperarem forças comendo papas de milho e, se assim preferirem, ganharem novo fôlego para mais folia, bebendo café forte, daquele à antiga, de cafeteira.

Duas das bandas que costumam animar o Entrudo de Quintela de Azurara

Duas das bandas que costumam animar o Entrudo de Quintela de Azurara

Chicotadas antes da Quaresma

Após algumas horas de sono, a tarde da Terça-feira Gorda tem então como ponto-alto a Sacada. Trata-se de um jogo em que os rapazes solteiros se mascaram de “velhas” e, transportando sacas de serapilheira amarradas em rolo, desafiam os homens casados a participar na brincadeira – caso contrário, levam uma chicotada com essa mesma saca. Segundo dados da Câmara Municipal de Mangualde, “dizem os mais velhos que este será um ritual de purificação da alma”, no que o objeito é proceder à “libertação dos maus pensamentos”.

E porque na quarta-feira a vida volta ao normal, o Entrudo da aldeia termina às 23h59 de terça-feira, com o Enterro que dá por encerradas as celebrações. A conclusão da festa faz-se ainda com lenha a arder, música, máscaras e animação, mas o objetivo, nessa altura, já é preparar os espíritos para o quotidiano e anunciar a chega da Quaresma, que, até à Páscoa, exige comportamentos mais regrados. Mas, por essa altura, a festa em Quintela de Azurara e Castro de Laboreiro já deixou impressões tão vivas nos seus moradores e visitantes que, durante os tempos de contenção e jejum que se seguem, muitas vezes serão essas boas memórias a confortá-los, comprovando que nas Aldeias de Portugal há uma boémia própria: rural, despretensiosa e tipicamente portuguesa. ■

A fogueira é ponto de encontro no Carnaval de Quintela de Azurara

A fogueira é ponto de encontro no Carnaval de Quintela de Azurara.

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